Eu odeio muitas coisas...
Ponto número um.
Odeio gente com falta de sensibilidade na cabeça e na ponta dos dedos. Gente bruta como as portas, gente que só faz barulho e bate com tudo. Gente que deixa caír tudo a toda a hora, gente ruidosa. Estou quase um João Gilberto, menos no melhor que ele tem.
Odeio que me lavem mal a loiça. - Não lavem! - Odeio que me deixem restos de comida na lâmina da varinha mágica. Que fiquem pedaços de laranja no espremedor. Encontrar panelas com bagos de arroz no armário. Óleo colado às paredes dos tachos porque foi metido na máquina de lavar.
Não percebo que não saibam pôr loiça na máquina. Ninguém me ensinou e não é preciso um tratado de física. Muito menos quântica. Há trajectos que a água não faz porque não tem mãozinhas para desviar as barreiras intransponíveis. E mesmo a água quente não tem unhas para esgravatar os restos de comida. Nem dentes.
Odeio que me façam coisas mal feitas, que me equivoquem. Que me digam que sim, mas façam que não. Que tentem impôr surdamente a sua opinião. Eu não encomendei sermão. E se a minha opinião é outra e é expressa, então é porque estou perfeitamente convicta e não me apetece ter que explicar tudo. Porque tudo é mesmo tudo. Raramente as coisas estão isoladas e tudo provoca reacção em cadeia. E eu penso em cadeia. E odeio que as pessoas não consigam pensar mais além. Outra vez a física. Acção/Reacção. Que não saibam calcular as probabilidades. Se o telefone toca. Se o biberon não está quente (já não peço que o lavem porque senão fica mal lavado. E a miúda pode apanhar uma gastroenterite). Se ficam coisas espalhadas no meio dos caminhos que possam não ser vistas no escuro ou com a miúda ao colo. Se a toalha fica molhada em cima da cama ou em cima da minha toalha. Que não seja na minha cama. Se fica a ponto de cair no chão. Que caia. Se o chuveiro fica colocado no alto. Se os bolsos ficam cheios de coisas. Coisas que caem e fazem barulho no meio do silêncio ou do sono. Coisas que centrifugam e se lavam na máquina de lavar.
E mais, muito mais.
Odeio gente que não usa os piscas, gente que não sabe conduzir mas conduz. Acho de uma enorme presunção, arrogância e falta de educação. Ou falta de visão. Gente que nunca percebeu para que servem. Gente que se acha superior a quem inventou o código. Gente que acha uma estupidez. Como gente que tem aversão a ler instruções. Gente muito superior. Que não percebe porque deve avisar antes de sair de uma rotunda ou virar num entroncamento. Porque além de quem vem atrás, há quem espere para saber se pode avançar e não avança se o outro vier a passar (que é o que se presume de quem não sinaliza o contrário). Odeio gente que conduz a olhar para a paisagem. Lá está: as probabilidades. Gente que não prevê a possibilidade de travarem à sua frente. E gente que não abranda antes de entrar nas rotundas mas sim depois de já ter entrado e quando vêm veículos a circular lá dentro!
Também não gosto que me alterem a lógica de arrumação das coisas, mais do que exemplificada. Divido-me entre a burrice e a provocação alheias e não gosto de nenhuma.
Mais do que depressa, tudo e bem não há quem! Desconfio de quem tudo faz, tudo controla. Não acredito em super mulheres (os homens nunca serão super, por isso nem importa mencionar). Porque abre lugar à imprecisão e eu não gosto de coisas mal feitas.
E sim, tenho problemas em delegar (princípio base da gestão, que agora aprendo…) porque raramente consigo ficar descansada. Raramente me correspondem às expectativas. Pela qualidade.
E lido muito mais do que o desejável com tudo isto que não gosto e não sei como sobreviver a isso sem me consumir.
Ponto número dois.
Odeio o sentimento de posse e o apego a bens materiais. Odeio.
Eu não guardo microondas na garagem, tendo um em casa, sabendo que outros os poderiam estar a utilizar. Eu não quero que o meu carro seja representativo daquilo que eu não sou, apenas quero que ele me transporte, às minhas filhas, ao meu cão e ao que for preciso.
Eu não sou escrava dos objectos, da casa, do que for. As coisas existem para me servir e não o contrário.
Eu dou o que dou, não anoto para depois cobrar.
Eu gasto dinheiro em vivências e não necessariamente em coisas palpáveis. E isso enriquece-me mais do que encher a vida de gadgets…
Eu não quero saber do último modelo de televisão, computador ou telefone. Eu não sei as marcas e os modelos dos carros. Eu não uso relógio nem óculos de sol (só se para variar um bocadinho e por muito pouco tempo, por isso bem pode ser baratinho…). Não quero saber dos modelos da Calvin Klein ou da Donna Karan, e sei as marcas porque sou Designer de Moda. Imagine-se!
Eu arranco as etiquetas das roupas porque me picam na pele.
E eu não gosto de pessoas mesquinhas.
Ponto número três.
Já me esqueci do que ia dizer a seguir. Pode ser que me lembre.
Ponto número quatro.
Ver a banda passar.
Eu pensei que ia ser diferente. Houve uma altura em que a minha vida era promissora. A cabeça processava rapidamente, talento exisitia, motivação e força. Tudo certo. O mundo nas minhas mãos. Podia ser o que eu quisesse.
Mas não fui. Porque sou uma romântica e me pus a ter filhos. E a vida mudou radicalmente.
Porque eu não tenho filhos para os ver passar, eu faço-os acontecer, naquilo que posso, naquilo que não deixo ao acaso. Que passe o resto.
Eu dedico-me, eu esforço-me, eu devia ser mais calma em relação a isso. E não estou a falar de resultados escolares, que eu não quero fazer aos meus filhos aquilo que me fizeram a mim. Estou a falar de amor, cumplicidade, compreensão. E posso estar a fazer tudo errado, mas não estou a deixar que façam por mim. Porque, aliás, ninguém faz.
Mas tenho espasmos. E um ego. E sei do potencial que há em mim. Em todos nós. Mas em mim. E julgo que tenho direitos. E quando as coisas não são feitas a sós é preciso que esses direitos se façam respeitar. Ou mais vale sós do que mal acompanhados. Pelo menos sabemos com o que é que contamos e não nos deixamos iludir. E (como eu aprendi a gostar do senso comum!) a minha liberdade termina onde começa a liberdade dos outros. E vice-versa, claro, que há quem não perceba o carácter universal da frase.
Ora se eu acredito que é preciso tempo e dedicação para que as coisas sejam bem feitas, isso aplica-se a casa, a filhos e a trabalho. Mais uma vez concluo que o todo não é possível. Mas quanto mais me deixarem de uma parte, menos eu tenho da outra. E eu tenho direitos. Eu sou, para além de mãe. Eu posso ser. E às vezes eu gostava de ser mais. Ou melhor: ser aquilo que posso ser. Não engulo é nada bem que julguem secundário aquilo que são os meus direitos e liberdades. Ou que pretendam tornar favores que me fazem, aquilo que são também deveres dos outros. Não me obriguem a pedir.
Não partam do princípio que eu “estou”, sempre. Que é obrigação minha. Que as prioridades dos outros podem ser sempre mais lúdicas do que as minhas (nem que seja pendurar o candeeiro, as prateleiras… eu também gosto de legos e puzzles. Eu sempre fiz bricolage…) porque eu me ocupo do essencial… não me reduzam a uma máquina de colo e mama, enquanto outras coisas podem ser feitas… eu chego a ter que escolher entre comer ou estender a roupa, como variante…
Se não me é dada liberdade para nada eu posso bem estar sózinha.
O “se não der, não dá” caíu-me mesmo muito mal, quando falávamos em “render-me” para não chegar atrasada às aulas… Eu já não estudo, já não quero ser a melhor… pelo menos deixem-me ir. (Mas ir por ir também não faz sentido, no fundo vou porque tenho esperança.)
Ponto número cinco.
As aparências.
Quero que se lixem as aparências. O que faz sentido é que as coisas sejam o que são e que funcionem.
Andar a fingir e com piores resultados é tacanhez.
Dormir é essencial. Respirar e comer. O resto vem só muitíssimo depois e se estas necessidades básicas estiverem satisfeitas.
Por isso onde fica a cama é bullshit.
A continuar, talvez.
Agora tenho que ir comer e devia estar a estudar. Mas antes isto que enlouquecer de vez.
17 comentários:
nem imaginas o bem que me fez ver isto escrito. para além de o ler, vê-lo escrito. acho que vou imprimir e distribuir. bjs.
Alma gémea?!? por onde tens andado nos meus últimos 7 anos??????
mulher, ver assim espelhadas partes de mim..
delegar, aprendi este ano que "devia" mas também percebi que é preciso confiar em quem. cc é "atirar fora" e não delegar.
a minha vida prometia muito. e estou à beira, sempre à beira.
i supose this will all work out and we will be laughing, not in the end, but on the way.
shit
eu podia ter escrito grande parte deste texto. é tudo tão verdade! parabéns pela clareza e honestidade.
Vou imprimir e copiar muitas, mas muitas vezes este texto, deixar-cair-lá-por-casa-espalhando-o-em-sítios-estratégicos, como não quer a coisa, como se de um "comando de televisão" qualquer se tratasse e quem sabe conseguir a atenção sem ter que o dizer falando.
reli-me ha tres anos atras. entretanto depois de algumas sessoes, gritarias e partos partidos passou...
jinhos e obrigada pela honestidade!
Este texto e estas respostas são a prova de que as mulheres são todas iguais. Tu percebes o que quero dizer. Direitos básicos que há muito deviam estar mais do que entendidos.
APLAUSOS!!!
gostava de ter tido a coragem de expressar tão claramente grande parte do texto ;) posso linkar?
bj ás míudas
raquel
às e nãso ás :)
bem......
é assim:
é às e não ás ;)
é da hora e já agora a culpa é dele ;)
É a 1ª vez que comento um post. E apenas o faço é tão difícl dizer o que a Lia disse. Obrigada por este momento de lucidez!
Subscrevo na integra e estou inteiramente de acordo com o 1º comentario, o da Inês...para a autora do blog: lucidez e raciocino, fantástica!
Gosto especialmente da etiqueta - mais tarde havera sexo.
Vim aqui parar e já percebi porquê!
Por vezes nem nos blogs conseguimos estes momentos de total desprendimento, um momento de Mulher, Mãe, Trabalhadora e tudo mais que a vida nos propõe.
Incrível... como eu também odeio tantas dessas coisas, mas o melhor é que é de facto preciso sentir tudo isso, para sentirmos o resto.
O 1º ponto é demais....
BJS,
temos de começar a falar de estrategia.
cruzar os braços não é solução, e o sexo para depois projudica a saúde dos dois!!
Só com a verdade é que algo pode começar a ousar mudar. E muito há para mudar na vida das mulheres. Acho que está na hora de lhes mostrar-mos do que realmente somos feitas! Freud levou trinta anos a estudar as mulheres e ficou na mesma.... se calhar não encontrou nenhuma como tu!
Tudo vai ficar bem.
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